Texto: Stefano Maccarini
Análise crítica para disciplina de pós-graduação em Documentário da FAAP
Instrument é um filme sobre a banda americana Fugazi feito pelos membros da banda em parceria com o diretor Jem Cohem. Ian Mackaye, guitarrista e membro fundador da banda, e Cohem estudaram juntos nos tempos de escola em Washington D.C. e o filme nasce a partir dessa amizade.
Mackaye era figura proeminente na cena musical alternativa da capital americana nos anos 80 desde que era adolescente, tendo fundado em 1980 a Dischord Records, selo independente que distribuía os discos da sua própria banda e de amigos. O fato do filme ter sido lançado pelo mesmo selo diz sobre o filme que ele compartilha da mesma ética “faça-você-mesmo” que o selo empregou ao longo de sua história.
O material de arquivo sobre o qual o filme é construído começa em 1989 com filmagens de shows em 8mm em preto e branco, sem som, feitas pelo próprio diretor, que acompanhava a banda em muitos dos shows, somados a vídeos de shows feitos por fãs, entrevistas da banda para canais de TV, áudios de entrevistas e demos cedidas por Mackaye além de sequências em 16mm com som e cor tanto de shows quanto momentos íntimos da banda como gravações, backstages e viagens.
É a partir do material em 8mm que o filme começa a nascer. Geralmente estas sequências, mostram momentos caóticos e explosivos da performance da banda no palco em velocidade reduzida, permitindo que o espectador identifique graça e destreza naqueles movimentos que depois ao longo do filme se revelarão abruptos e violentos, remete muito ao modo documental poético, como apresentado por Bill Nichols. A trilha utilizada nessas sequências não se relaciona diretamente as imagens e sim a trechos de ensaios e demos gravadas pela banda. Essas por sua vez se relacionam a natureza fragmentária da maneira que o filme desenvolve a história da banda. Ao longo do filme pouco se sabe sobre as histórias pessoais ou motivações individuais dos personagens, ou até mesmo a cronologia dos acontecimentos, salvo quando indicado. Essas sequências aproximam o filme dessa lógica, e própria colorização amarela utilizada distancia das imagens em 16mm com cor e som, que agem no sentido do registro audiovisual da performance em si.
O Fugazi não vendia camisetas em shows, nem cobrava mais do que cinco dólares por show. No final dos anos 90 eles vieram para o Brasil e tocaram de graça na UFPR, o ingresso era dez reais. Lançavam suas próprias musicas e eram donos do fruto do próprio trabalho, o que naquela época era raro. Após a explosão do Nirvana todas as bandas que possuíam esse ethos punk acabaram assinando com uma grande gravadora, menos o Fugazi. Esse ódio escancarado à indústria musical reflete esteticamente sobre o próprio filme, pois no afã de ir contra a maré do videoclipe, esse sendo entendido como um curta metragem musical para passar na TV, a banda criou apenas 1 produto audiovisual durante toda a sua existência, o próprio filme que esta sendo tratado nesta análise, com duas horas de duração, que reflete sobre os 13 anos de existência da banda até então. Viver no auge da MTV e criar um vídeo sobre música que jamais passaria na MTV mostra bem como a banda operava e a mensagem contra as grandes corporações que a o grupo queria passar tanto pelas letras quanto pelos processos que orientavam a produção do grupo.
Mas o capitalismo através da indústria musical tentou de várias maneiras cooptar a mensagem anti-consumo que o Fugazi tentava passar. Ao longo da carreira a banda sempre foi muito solicitada para entrevistas e Ian Mackaye sendo uma das figuras centrais nessa história tomava por muitas vezes o papel de porta-voz da banda. O filme utiliza material de arquivo de programas de TV, tanto para trabalhos de aula, como é o caso de uma entrevista para uma colegial americana, como para programas no formato mais parecido com o da MTV, com repórteres e passagens. Através desse material que o espectador conhece mais sobre as posturas políticas da banda. Em uma dessas sequências Mackaye reclama que as entrevistas giram sempre em torno das posturas políticas da banda e raramente falam da música. Essa sequência trabalha mais na chave expositória dos modos documentais de Nichols pois é quando o espectador mais recebe informações sobre os personagens, o próprio formato de entrevistas para TV exalta essa qualidade jornalística de explicar de uma maneira que todos entendam.
As imagens dos shows em 16mm com cor e som são as jóias da coroa pra quem pretende se envolver nesse tipo de filmagem de show independente. A câmera sempre no palco utilizando lentes abertas mostra que Cohem sabe se colocar no meio da ação sem atrapalhar a performance nem as danças da plateia. O fato da câmera se encontrar entre a banda e o público remete a ideia de “mosca na parede” preconizada pelo modo observacional de fazer documentário eternizado no mundo da música pelo filme “I’m not there” de D.A. Pennebacker. É no palco que a banda existe no mesmo espaço que o seu público, é onde, por falta de expressão melhor, a magia acontece. E para uma banda que defende o faça-você-mesmo como práxis a escolha circunstancial de filmar apenas com uma câmera vai de encontro ao ideal da banda de fazer as coisas de maneira barata, com os próprios recursos, porém da melhor maneira possível para a arte que estão criando. Além do show em si, um clássico do folclore de shows de punk rock está eternizado nessa sequência. O arquétipo do vocalista de banda que prega pra plateia seus valores estava presente desde o começo do movimento punk, mas com o Fugazi chega a extremos como sessões de humilhação pública, sermões e troca de socos entre Mackaye e membros da plateia.
Os momentos capturados nessa bitola que não são os shows propriamente ditos são momentos de gravação, ensaio ou viagem. A compenetração dos membros da banda no que eles estão fazendo colabora ainda mais para o ponto de vista observacional. O único momento em que o filme se aproxima do modo reflexivo é durante esses registros de ensaio em que uma espécie de reunião de banda acontece. Com todos os membros do grupo sentados em uma mesa de jantar, Mackaye, sozinho no outro canto, começa a questionar o motivo pelo qual estão fazendo o filme. Apesar o diretor não entrar na questão, sendo um filme assinado por todos, as palavras de Mackaye nessa cena definem a visão dos autores para o filme. Nas palavras de Mackaye o filme não pode dar ao público uma ideia pré-concebida do que é a banda, sabendo o que o show ao vivo é o grande momento do grupo, e vivendo na era da MTV, seu principal medo é que o filme acabe com a curiosidade das pessoas em relação ao show da banda e sendo essa a principal fonte de renda deles é uma preocupação legítima a se ter.
Uma das características mais marcantes desse filme, no entanto, é a colaboração dos fãs e amigos nos retratos em movimento feito por Cohem, na frente dos locais de shows. Uma banda para ser independente do mainstream depende inteiramente do interesse dos fãs para continuar sendo financeiramente viável. Pela quantidade de tempo que o Fugazi ficou na ativa é possível dizer que eles se tornaram mestres nessa relação. Por conta do discurso e da postura da banda de ser firme em suas posições e de portar uma mensagem anti-capitalista a banda acabava atraindo pessoas que se viam como mais que meros consumidores. Essa ideia do público como parte integrante da obra hoje em dia é muito mais clara devido a campanhas de financiamento coletivo e a própria natureza da indústria musical que mudou muito, mas nos anos 90 essas iniciativas eram poucas e o Fugazi era um farol independente num mar escuro dominado por grandes gravadoras, que enxergavam o público apenas como consumidores passivos. A pose dos fãs para a câmera pressupõe uma colaboração, por mais que mínima, entre o diretor e o público da banda. O objetivo dessa sequência de fãs é o de acabar com a hierarquia entre diretor, banda e público e ao olhar para a lente os retratados estão fazendo um raport direto com o espectador, que em 1999, era exatamente o fã de Fugazi que teria a oportunidade de comprar o VHS no show da banda. Apesar da colaboração entre diretor e sujeito filmado ser apenas um olhar cúmplice, essa sequência se refere ao modo participatório do fazer documental pois denota essa intenção do diretor em interagir com as pessoas sendo filmadas.
Instrument, 20 anos depois do seu lançamento, ainda se mostra um prato cheio pra qualquer um que pegue uma câmera e saia acompanhando uma banda, muito como o diretor Jem Cohem fez ao sair da escola. Apesar de ser um filme longo com longas sequências musicais ele possui ritmo devido aos diferentes regimes de modos documentais empregados pelo diretor entrecortados entre si. Apesar das motivações iniciais da banda ficarem ocultas e o filme não chegar a nenhum lugar específico, permite a banda se colocar junto com seu público em um registro de um período, porém sem fechar a porta para interpretações e especulações sobre as músicas ou sobre a postura dos membros do grupo. Sem dúvida o filme ajudou na construção da figura mítica do Fugazi como o bastião da pureza ética dentro do punk rock, fato que muitas vezes é mais noticiado que o próprio som da banda, no entanto o filme deixa claro nas performances porque tantas pessoas se interessavam por eles apesar de tudo. A minúcia na execução, o completo entrosamento musical dos membros, a postura crítica em relação a sociedade de consumo e a energia visceral de tocar cada show como se fosse o último são a marca definitiva que o Fugazi deixou para todas as bandas independentes que vieram depois e o filme entrega tudo isso da sua própria maneira, e não como um programa da MTV sobre bandas antigas.