Tefopress: Nara Rosetto pelo poema “Quando eu morrer” de Mário de Andrade – PERCURSOS

Texto e fotos: Stefano Maccarini

Publicado originalmente em medium.com/percursos em Outubro de 2016.

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Nara Rosetto, 29 anos, cresceu no Ipiranga e não sabe andar de bicicleta. Depois de passar por uma faculdade de arquitetura e trabalhos em escritórios imobiliários na Berrini, tendo que se deslocar com o carro da família para dar conta de tudo, começou a usar o pouco tempo de almoço para andar a pé pelas ruas da cidade. Com o fim dafaculdade conseguiu deixar o carro de lado e passou a utilizar o transporte público: um ônibus, dois metros e um trem para chegar de casa ao trabalho. “Era muito mais agradável do que estar preso numa lata metálica, eu lia e prestava atenção no meu entorno e me sentia muito melhor fazendo esse percurso gigante” lembra.

Começou a trabalhar na Angélica e após uma rodada de contas e mudanças de estilo de vida resolveu sair da casa dos pais e morar na região da República. Passou então a priorizar o caminhar em seus deslocamentos diários. “Você pega o ônibus pra andar quatro pontos e vai demorar a mesma coisa. Se for a pé você vai observar muito mais a cidade, deambular, desenhar”.

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Os novos caminhos a levaram a se relacionar mais com a cidade. Em 2015 com mais meia dúzia de amigas começou o meiofio, um coletivo que intervém na paisagem urbana utilizando artes têxteis, principalmente o crochê. O grupo intervém em lugares “chateados” criando ações que “tem o poder de fazer com que as pessoas olhem para os lugares e notem o entorno, criando uma memória afetiva com o espaço”. Também está por trás do Janelas SP, projeto que partiu dos seus desenhos de observação da cidade e tomou forma quando uma amiga apresentou o Windows of NY. A ficha do projeto caiu quando chegou a conclusão que as janelas de SP poderiam render um resultado visual mais rico do que as da cidade americana. “Temos diversos tempos históricos juntos, misturados e das mais diversas qualidades tornando possível contar uma história da cidade através desse elemento”.

Nara sugeriu que percorrêssemos o poema “Quando eu morrer” de Mário de Andrade, que foi poeta, músico, jornalista, professor, além de ter fundado o IPHAN e participado da Semana de 22. O percurso começou na na Barra Funda, onde Mário viveu a maior parte da vida e terminou no Ipiranga, onde Nara cresceu e morou até 2014.

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Quando eu morrer quero ficar
Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

Encontrei com Nara, Felipe e Leandro as 10 da manhã na Casa Mário de Andrade, na esquina da rua Lopes Chaves com a rua Margarida. A casa originalmente fazia parte de um conjunto de três residências que pertenciam da família de Mário, porém somente a que o poeta morava foi restaurada e reaberta como equipamento cultural faz pouco tempo. Também visitamos o porão da casa, que vale mais pelo espaço em si do que pela exposição. A programação de casa gira em torno de cursos voltados a música e literatura. A visita guiada mostrou que Mário é um “andarilho que nem a gente e fez percursos muito parecidos com o que a gente vai fazer hoje”, profetizou Nara. No poema, a cabeça faz referência ao lugar onde Mário costumava trabalhar e estudar e onde passou a maior parte dos seus anos produzindo.

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Seguimos na Lopes Chaves até a rua Barra Funda, seguindo sentido rua Aurora. Passamos o Teatro São Pedro e entramos na Baró Galeria. A exposição coletiva Interlúdios 2016 nos fez ficar cerca de meia hora na Galeria explorando o espaço expositivo criado pelas instalações no enorme Galpão. Chegando à uma das curvas do Elevado João Goulart entramos na rua Helvetia onde nos deparamos pela primeira vez com o cheiro de fezes humanas. “É muito perto do baxio do minhocão, perto do fluxo da cracolândia e muito murada. Isso acaba causando um efeito cascata de desumanização. Ao levantar muros o espaço da cidade fica mais hostil porque as pessoas não passam mais por aquele lugar. Com isso vêm outros efeitos que instalam medo de se estar naquele lugar. Quando o medo se instala só se gera mais medo, através da instalação de câmeras de segurança, cercas elétricas e muros”, explica Nara.

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Subimos a Helvetia até a Barão de Limeira e acabamos passando perto demais do Vovô Ali. O cheiro de shawarma (R$14) fez com que Felipe e Leandro não resistissem e pegassem um cada para viagem. Paramos no cruzamento da rua Aurora com a Conselheiro Nébias onde, segundo diz a história, Adoniran Barbosa viu, da sacada do seu apartamento de esquina, a maloca do Mato Grosso e do Joca ser derrubada pelos homem com as ferramenta há alguns 50 anos atrás. Na Aurora foi onde Mário de Andrade nasceu e cresceu, portanto os pés.

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No Largo Payssandu, o sexo, local histórico de prostituição na cidade, passamos em frente ao Ponto Chic, local de nascimento do Bauru e ponto de encontro de Mário de Andrade e da turma de 22. Virando a esquerda na rua do Boticário chegamos ao Ita, um “lugar de resistência”, porque “apesar das mudanças que o centro passou e apesar da rua ser toda murada e fechada ele continua firme e forte servindo a mesma comida um preço acessível”. Chama a atenção por ser um lugar democrátivo já que serve motoboy, servidor público e profissional liberal almoçando ali, no balcão, sem mesa. Milagrosamente conseguimos pegar 4 lugares no balcão, um do lado do outro. Entre os pedidos: uma omelete (R$15,00), três bifes com ovo (R$16), duas cervejas e um pudim maravilhoso (R$4). A conta é tradicionalmente feita no balcão de mármore à lápis. Após o almoço Leandro nos deixou.

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Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade

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Bem próximo ao Largo, nos dirigimos à Praça das Artes, onde já funcionou o Conservatório de Música onde Mário lecionou. Nara me mostrou uma das intervenções do meiofio: um trecho de “Cidades Invisíveis” de Italo Calvino, bordado nas grades do chão que lia “Percursos são traçados entre pontos no vazio”.

Um tapume impedia a vista do Vale do Anhangabaú, Nara explicou que o projeto original conectava a rua Conselheiro Crispiniano ao Vale. “Por falta de verbas teve que ser feito um suporte de estrutura por causa de um grande vazamento que vem do cine Marrocos. Acabou o dinheiro pra finalizar tanto o bloco que seriam as salas de ensaio quanto a praça”. O sentimento foi de alegria em ver que ao menos a praça está em obras e que o Vale vai ganhar mais um acesso exclusivo para pedestres e bicicletas.

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Infiltração vindo do Cine Marrocos, na Praça das Artes.

Cruzamos a São João, fechada para carros e aberta para pedestres, e entramos no recém restaurado prédio dos Correios e Telégrafos onde estão, no poema, os ouvidos direito e esquerdo do poeta. Atravessamos o Vale e paramos para um pastel de belém (R$6) e café (R4) na Casa Mathilde, um novo clássico que abriu em 2014 com filas de espera morro abaixo. Deliberamos sobre onde estariam os olhos, há um consenso sobre a referência ser em relação ao Pico do Jaraguá, 16 km a Noroeste de onde estávamos e 1135 metros de elevação, que permitiriam ao artista uma vista ampla da cidade.

Dada a impossibilidade de nos deslocarmos até lá, fomos em direção ao Largo São Bento, a Universidade do poema, um dos lugares em que estudou e teve contato com filosofia e outras humanidades porém sem ter concluído os estudos lá. Mário também estudou na Escola de Comércio Álvares Penteado, de onde saiu porque brigou com um professor. Por fim conclui os estudos no Conservatório Musical, onde lecionou e se dedicou academicamente. Discutimos sem chegar a nenhum lugar sobre o porquê do joelho estar lá. Sem sucesso.

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No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Descendo a rua Boa Vista chegamos ao Pátio do Colégio, o coração e marco zero da cidade de São Paulo. Os jesuítas chegaram em 1554 e deram início a destruição (catequização) do povo indígena que habitava a região. Foi o índio Tibiriçá que ajudou os padres a colonizar a região. Em troca ganhou uma estátua mal acaba, acorrentada a uma cerca de arame farpado do lado do lixo, no fundo do Pátio.

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Coração crochetado, no coração da cidade, no coração do Mário numa cerca de arame farpado com vista para um edifício garagem. ”A cerca representa bem a ideia de cidade que somos contra. A cerca diz medo, violência, não venha aqui” explica Nara sobre o local que escolheu para a intervenção. “Sou completamente desapegada com as coisas que eu coloco na rua. A cidade decide o que faz.”

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O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade…

Dirigimo-nos para a Praça da Sé e de lá seguimos para o Parque da Independência, no bairro do Ipiranga. Descemos a Liberdade pela Conselheiro Furtado, paralela a rua da Glória. Dizem os matemáticos que é no infinito que elas se cruzam, pois foi no infinito que descemos para o Cambuci, virando a esquerda quando as duas se encontram. A rua da Glória virou Lavapés, que depois do Largo do Cambuci virou rua da Independência. Dava pra notar que estávamos nos afastando do lugar psicogeográfico relacionado ao centro da cidade. Os prédios comerciais altos deram lugar a casas geminadas, calçadas e ruas tranquilas e edifícios residenciais de três andares.

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Seguimos na rua do Ouvidor aproveitando o bairro arborizado e a quase total ausência de carros. Evitamos o possível a Avenida Dom Pedro I, que como tudo relacionado ao Império, cheira a atraso de vida. Sem escolha, entramos na via na última quadra antes do Parque. Oito pistas exclusivas para carros separam uma calçada da outra. Andamos pelo espraiamento morto e barulhento até chegar às grades fechadas do Parque. Costeamos as grades procurando uma entrada. Do primeiro portão, trancado com um cadeado, até o que permitia a entrada foram percorridos 300 metros.

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Nas margens plácidas do Rio Ipiranga uma grande decepção, bem de acordo com o nosso processo de Independência. Uma casca de concreto deixa bem claro que o rio está morto por décadas. “Resume bem como a gente trata os nossos rios, a cidade foi construída sobre eles e esqueceu-se das suas funções como por exemplo abastecimento de agua. Temos 300 rios enterrados” explicou Nara. Vimos uma família toda andando por sobre o muro de pedra, por dentro da grade que separa da rua. A família toda pendurada na grade, com o rio diretamente embaixo, um a um, fez a travessia para a rua enquanto torcíamos como numa disputa de pênaltis para que tudo terminasse bem.

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Na Casa do Grito, uma antiga venda e hospedaria, paramos para analisar algumas das paredes reconstruídas de taipa. Essa é a casa que supostamente aparece no quadro de Pedro Américo, em que Dom Pedro I, o maçom, supostamente teria proclamado a suposta Independência do Brasil. Especulamos um pouco sobre o local exato do grito. Segundo o quadro, achei que teria ocorrido voltado para o que hoje é um poste de luz. Após investigar mais um pouco encontramos uma Acácia, árvore símbolo da maçonaria e uma placa triangular no chão, ao lado da casa, entre ela e o Rio. Concluímos que se alguém um dia gritou “Independência ou Morte” teria sido lá, junto com a liberdade do poeta.

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As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

ROTAS E INFORMAÇÕES

  • Oficina Cultural Casa Mário de Andrade — Rua Lopes Chaves, 546
  • Baró Galeria — Rua Barra Funda, 216
  • Restaurante Ita — Rua do Boticário, 31
  • Praça das Artes — Avenida São João, 281
  • Casa Mathilde — Praça Antônio Prado, 76
  • Pátio do Colégio — Largo do Pátio do Colégio, 2
  • Parque da Independência — Avenida Nazareth, s/n
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